segunda-feira, 14 de julho de 2008

Raízes do Brasil


Sérgio Buarque de Holanda


Uma das verdadeiras obras fundadoras da moderna historiografia e ciências sociais brasileiras, Raízes do Brasil é um clássico que dispensa apresentações.

Sérgio Buarque de Holanda se propõe a investigar, como exposto no título, as raízes sócio-culturais fundadoras de nossa sociedade brasileira, isto é, o que faz com que nosso “jeitinho” seja facilmente reconhecido como característica eminentemente brasileira.

Nossa incapacidade de separar vida pública e vida privada, valorizando mais aspectos afetivos que meritórios, continuam trazendo conseqüências, principalmente, nas relações de trabalho, em que o nepotismo é prática constante e histórica.

Essa característica juntamente com outras constroem a imagem do “homem cordial”, o qual não pressupõe bondade, mas somente o predomínio de comportamentos de aparência afetiva. Não seria o espelho de nossa sociedade?

Tanto pelo seu método de análise quanto pela erudição e desenvoltura da escrita, Raízes do Brasil, publicado pela primeira vez em 1936, se mantém atual e influenciando gerações de historiadores. Todas essas qualidades fizeram deste livro, nos dizeres de Antonio Candido, “um clássico de nascença”.


Companhia das Letras, 26ª edição, 2007

segunda-feira, 9 de junho de 2008

FLIP 2008!

Até que enfim saiu a programação...

Programação
A programação completa da Festa Literária Internacional de Paraty, com biografias dos autores convidados e resumo das mesas está disponível neste site. São 41 autores convidados vindos da América do Norte, da Europa, da África e de vários países da América do Sul, além dos 22 autores nacionais. A FLIP acontecerá entre os dias 2 e 6 de julho.

Homenagem a Machado
Abrindo a FLIP, Roberto Schwarz, um dos mais destacados intérpretes da obra de Machado, discutirá o livro Dom Casmurro, por ele considerado o “romance possivelmente mais refinado e composto da literatura brasileira”. Em outra mesa, “Papéis Avulsos”, Flora Süssekind, Luiz Fernando Carvalho e Sergio Paulo Rouanet, falam sobre suas diferentes experiências com a obra machadiana.
A homenagem a Machado se estende também pela programação do FLIP ETC. com adaptações da obra do autor para o cinema, teatro, e uma exposição sobre o Rio de Janeiro do fim do século XIX.

Show de Abertura
Luiz Melodia é o convidado desta sexta edição para o show de abertura, que acontecerá na quarta-feira, dia 2/7.

Ingressos
Os ingressos estarão à venda a partir do dia 10/6. A compra pode ser feita pela internet, por telefone, ou em pontos-de-venda da Ingresso Rápido. Para detalhes clique aqui.

  • Tenda dos Autores (mesas e conferência de abertura): R$ 25 cada;

  • Show de abertura na Tenda do Telão: R$ 25;

  • Tenda do Telão (transmissão das mesas e da conferência de abertura): R$ 8.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

A divina comédia

Dante Alighieri

Nunca é tarde demais para se ler um clássico...

Até onde você iria em busca de sua amada? Dante foi até o Inferno, onde, guiado pelo poeta romano Virgílio, divisou os sofrimentos das almas cativas, inquiriu-as acerca de seus pecados; percorreu o Purgatório, chegou até o Paraíso, onde Beatriz finalmente é encontrada e lhe revela os mais sublimes mistérios de Deus e da Criação.

Em plena idade de ouro do mundo medieval, a Florença do século XIII é um rico centro cultural, a mais importante cidade da Itália central e berço do poeta Dante Alighieri.

Escrito entre 1307 e 1321, A Divida Comédia é sua obra-prima, e nela Dante relata seu desenvolvimento espiritual e concentra a atenção do leitor para a vida após a morte. Obra em forma de poema épico, rigorosamente simétrico e planejado, o livro narra uma odisséia pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, descrevendo cada etapa com detalhes incríveis, quase visuais.

A Divida Comédia é um clássico obrigatório para todo o tipo de público, não só por ser considerada pelos críticos uma das melhores obras da literatura mundial, mas também por sua engenhosa sabedoria e erudição, uma síntese do pensamento medieval que, creio eu, tenha muito a ensinar ao pensamento pós-moderno...

domingo, 20 de abril de 2008

Marketing para livros?

A palavra marketing quer dizer “mercado em movimento”, mais especificamente, marketing é a promoção de um produto. Por vezes, o sucesso nas vendas de um produto é tão somente garantido pelos publicitários e suas brilhantes idéias. Pode não haver consumo, se não há uma extensa campanha publicitária para servir de escopo ao produto.

O que é a Coca-Cola? Prescindindo de teorias conspiratórias, o fato é que a Coca-Cola já não é mais um refrigerante, é uma marca. A Coca-cola quer ser o refrigerante de todos os momentos, ou melhor, quer ser seu refrigerante no café, no almoço e no jantar; quer estar com você nas grandes experiências da vida, na balada, nas viagens, no primeiro emprego; nas datas especiais, no natal, na páscoa, no carnaval.

Enfim, beber Coca-Cola não é só consumir um refrigerante, mas está relacionado ao conjunto de signos e estilos de vida que aspiramos ter enquanto consumimos (compramos) tal produto. É a publicidade que faz ser o que essa grande marca é. O que seria desse mero refrigerante sem publicidade?

Refrigerantes, tênis, roupas, geladeiras, carros, cigarros, redes fast-foods, não seriam nada sem a publicidade, sem criar uma “ilusão” de que, de alguma forma, o produto X ou Y é perfeito para você, que ele vai te deixar livre, feliz, satisfeito, etc. E para atingir seu público-alvo (target), a publicidade realiza os mais variados tipos de pesquisas de marketing, a fim de reunir informações cada vez mais precisas sobre seu consumidor.

Antes que pensem que estou enchendo a bola dos publicitários, eu pergunto: há algum produto que não precise de uma extensa campanha publicitária para ser vendido?

Quando uma editora escolhe publicar determinados autores, o retorno financeiro não é a único critério a ser levado em consideração. Há um outro critério, a qualidade. É claro que há livros de auto-ajuda, romances comerciais, esoterismo nas livrarias. Mas também há Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, autores que com certeza não dão lucro às suas editoras, mas estão lá, grandes clássicos da literatura nacional.

Se o único critério fosse o de “vendas” não teríamos esses e outros excelentes escritores sendo publicados no Brasil.

Bons livros sempre serão comprados por bons leitores. No entanto, um bom leitor não se “fabrica” simplesmente com apelativas frases em outdoors em beira da estrada. É um processo lento e difícil. Fábio Sá Earp e George Kornis[1] resumem bem essa questão, dizendo que “não há nada mais caro que produzir um leitor”.

De fato, “produzir um leitor” no Brasil é algo complexo, são necessários uma boa educação e programas de incentivos à leitura, enfim, tudo que os nossos governantes sabem e não colocam em prática. E quem mais perde são os próprios brasileiros, vítimas de uma imensa lacuna cultural construída pela história.

Um bom leitor do Brasil comprará livros independentemente de sua publicidade. Afinal, como o marketing pode convencer a massa de que “Crime e Castigo” é uma obra-prima e deve ser comprado? Imaginem os slogans...

“Leia ‘Crime e Castigo’, e tenha um senso apurado das conseqüências de seus atos!”

“Dê um Volta ao Mundo em 80 dias com Júlio Verne.”

Enfim, antes que meus exemplos se tornem mais toscos, não há como criar promessas ilusórias com o produto livro. O livro tem efeitos subjetivos, não há como simplificá-los em uma frase de cinco palavras. Um livro pode mudar a vida de alguém assim como pode não fazer a mínima diferença para outros.

É claro que a publicidade tem favorecido, e muito, o mercado editorial. É um incentivo à leitura, um alicerce, sobretudo para um público não-leitor. A publicidade é uma espécie de tapa-buracos, não a solução. O livro não depende dela. O livro ainda respira porque é alimentado por aqueles que são amantes do conhecimento, cada vez mais escassos.



[1] EARP, Fábio Sá; Kornis, Geroge. A Economia da Cadeia Produtiva do Livro. Rio de Janeio: BNDES, 2004. Se você mora no Rio, este livro pode ser retirado lá no BNDES no Centro (Av. Chile, 100), ou em pdf no site www.bndes.gov.br, na parte de publicações.

domingo, 6 de abril de 2008

Choque Cultural


Dizem que o livro é caro, mas...


O Globo - 23/03/2008 - por Fellipe Awi
"Considere-se privilegiado o leitor que, ano passado, foi ao cinema, ao teatro, a um show de música, a uma exposição de arte ou simplesmente leu um livro em casa. No Brasil, ele pertence a uma minoria. Mais da metade dos brasileiros não realizou sequer uma dessas atividades em 2007. É o que mostra pesquisa encomendada pelo Sistema FecomércioRJ.

Do total de entrevistados, 69% disseram, por exemplo, que não leram nenhum livro ano passado. A falta de hábito foi o motivo alegado por 58% dos entrevistados das classes D e E, apenas 1% a menos que os das classes A e B. Apontado por muita gente como o maior vilão dos consumidores de cultura, o preço dos ingressos ou dos livros perdeu de longe para dois problemas ainda mais preocupantes, uma vez que demandam mais tempo para serem solucionados: a falta de hábito e o desinteresse."

domingo, 23 de março de 2008

Renato Russo: O trovador solitário

Arthur Dapieve

Não sou muito fã de biografias, mas esta despertou um interesse particular não só pela personalidade em questão, enigmática e símbolo de uma geração, mas também pela forma com que foi escrita e editada, parte que, a meu ver, é igualmente importante.

Com um estilo agradável e objetivo combinado com a paixão de um fã, Arthur Dapieve faz um passeio pela vida de Renato Manfredini Jr, o ícone que se sentia desconfortável com o título de novo “porta voz da juventude”. Sua vida e história, sem dúvida alguma, impactaram o rock brasileiro nos anos 80, servindo de marco para uma geração coca-cola.

Cada capítulo da vida de Renato Russo refletia profundamente em suas letras. O livro soube captar isso muito bem, não deixando de relacionar as letras das canções – principalmente as mais famosas – com o momento vivido por Renato e pela Legião Urbana. É quase uma leitura musical!

O livro Renato Russo: O Trovador Solitário, além de acompanharmos a trajetória deste artista fundamental para a música brasileira, reúne ilustrações, fotos marcantes e sua discografia completa. O projeto gráfico é magnífico, só nos dá ainda mais vontade de ler.

Ediouro, 2006

segunda-feira, 17 de março de 2008

Saraiva compra Siciliano

“A Saraiva anunciou a compra de 100% das ações do grupo Siciliano. Segundo o diretor-presidente da Saraiva, Marcílio Pousada, a empresa vai pagar R$ 60 milhões pelo negócio e ainda assumir a dívida líquida (não auditada) da Siciliano, no valor de R$ 13 milhões. A negociação, que vinha se desenrolando desde agosto de 2007, inclui as atividades editoriais do grupo, com os selos Arx, Futura, Caramelo e ArxJovem, e também um site de comércio eletrônico.

As 63 lojas Siciliano –52 próprias e 11 franquias – passam a integrar a rede de livrarias Saraiva, que em dezembro de 2007 tinha 36 lojas próprias. Ao todo, a Saraiva passa a ter 99 livrarias, na maioria dos Estados brasileiros.

A compra da Siciliano pela Saraiva reforça o movimento de consolidação entre as livrarias brasileiras. Juntas, as duas redes serão responsáveis por cerca de 20% da venda de livros do País, um mercado que movimenta R$ 3 bilhões por ano.”

Fonte:
http://www.abrelivros.org.br/abrelivros/texto.asp?id=2976

...

Uma única empresa dominando os principais pontos de vendas no país pode não ser tão favorável para as editoras, cujo poder de barganha tende a diminuir. Editoras pequenas então, nem se fala!

O que será dos pequenos livreiros quando uma megastore como a Saraiva oferece descontos de 20% a 40% no preço final do livro? Sem dúvida, concorrência desleal. Talvez teremos mais “livreiros assassinos” no Brasil...

domingo, 16 de março de 2008

O mal-estar da pós-modernidade

Zygmunt Bauman

Considerado o teórico da pós-modernidade por Anthony Giddens, Zygmunt Bauman analisa o mundo contemporâneo e suas conseqüentes mazelas, prometendo causar o mesmo impacto quando do lançamento do divisor de águas do mundo moderno: O Mal-estar da Civilização, de Freud.

Não é por acaso que o livro se intitule O mal-estar da pós-modernidade, uma vez que o paralelo com a grande obra de Freud é recorrente ao longo deste, em que uma inquietante pergunta se torna freqüente: Será que ainda podemos revisitar os argumentos freudianos para explicar as contradições dos dias hodiernos?

Publicado pela primeira vez em 1930, em Viena, O mal-estar da Civilização foi revolucionário na sociedade tradicional da época, pois postulava que o excesso de ordem e segurança da civilização moderna exigia muitas renuncias ao indivíduo, constituindo-se em obstáculos à felicidade. O mundo civilizado e suas instituições, segundo Freud, impunham restrições do agir das pessoas, e essa coerção privava-as de ter a tão almejada liberdade.

“A civilização se constrói sobre uma renúncia ao instinto”, assim dizia Freud. A civilização “impõe grandes sacrifícios” à sexualidade e agressividade do homem, e isto era, para Freud, o que nos fazia sentir o mal-estar, ou seja, o empecilho à satisfação individual.

Passados mais de setenta anos, a liberdade individual reina soberana nos dias atuais, “é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria acerca de todas as normas e resoluções supra-individuais devem ser medidas”, nas palavras de Bauman.

A desregulamentação é a ordem da vez. Vivemos em uma época líquida, em que os pilares da civilização moderna foram derrubados em favor de um crescente hedonismo. “O reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre mais aprazível prazer” é o nosso objetivo supremo, sacrificamos a ordem e a tradição por ele, não há mais limites nem morais nem civilizatórios que impeçam essa busca.

Então, será que agora só nos resta gozar a liberdade e a felicidade das quais nos fala Freud?

O mal-estar da pós-modernidade tenta explicar o que tem ainda gerado desconforto no mundo atual, imperando um individualismo excessivo, um consumismo desenfreado, enfim, uma era de incertezas e fluidez, relacionamentos humanos frios e inconstantes.

Por isso, o filósofo polonês merece destaque nas salas de discussão das universidades e também nas prateleiras de leitores não-acadêmicos.


­­­­­­­­­Zahar, 1997
____________

Bauman foi considerado pela revista “Entre livros” um dos 7 filósofos imprescindíveis para este milênio. (Ano 3, nº 31)

www.revistaentrelivros.com.br

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Fragmentos de um discurso amoroso

Roland Barthes


As palavras nunca são loucas (no máximo perversas), é a sintaxe que é louca (...)

Roland Barthes

O que é o amor? Indagação nada fácil de responder, poetas e românticos de todos os tempos se esforçaram e se esforçam para alcançar ao menos um resquício do que venha a ser Eros. Roland Barthes aposta então em outra pergunta: Como o amor se apresenta quando ele é comunicado? Isto é, quando está infundido num complexo emaranhado de estruturas e fórmulas que é a linguagem?

Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, pretende investigar o amor – ou a condição amorosa – no ponto de vista do discurso. A carta de amor, as declarações, são formas de tentar pôr em palavras um sentimento sublime e quase imperscrutável, por isso que o discurso amoroso é, muitas vezes, contraditório, exagerado, louco.

Para incorrer nesse desafio, Barthes, como ilustre intelectual da França de 1968, escolhe um método “dramático” na sua escrita, renunciando a exemplos e substituindo a simples descrição do discurso amoroso por sua simulação, desenvolvendo-se em primeira pessoa, o “eu” amoroso, posto que o livro todo é uma enunciação, e não uma fria análise. É alguém (o amante) que fala de si mesmo e do outro (objeto amado), que não fala.

Para compor o sujeito apaixonado, o semiólogo também se vale de inúmeras e preciosas referências, que acompanham essa enunciação ao longo do livro. As citações a Werther de Goethe norteiam todo o discurso, ao lado de textos clássicos como O Banquete de Platão, além de consagrados escritores – Proust, Flaubert, Balzac, Baudelaire, Stendhal – e filósofos – Freud, Sartre, Lacan e Nietzsche. Há também o que Barthes recolheu em conversas com amigos e experiências de sua própria vida.

Abordando de maneira criativa um tema considerado démodé para a intelectualidade da época, Fragmentos de um discurso amoroso é livro obrigatório para aqueles que se interessam por literatura, lingüística, filosofia e, é claro, amor.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ficções

Jorge Luis Borges

Ler um conto fantástico de Borges é como ler Dostoievski pela primeira vez: uma experiência única. O alto padrão de sua escrita combinado com o teor intelectual e filosófico de seus contos conferem-lhe um estilo insólito primoroso, digno de grandes

escritores.

No entanto, terminar de ler Ficções não é lá muito agradável; ao final do livro, dá aquela sensação de quero mais.

Ficciones (1934-1944) é obra-prima de Borges, pois deu fama internacional a seu autor e marcou para sempre gerações de leitores no mundo todo. Esse grande livro reúne contos fantásticos cuja crítica especializada tem encontrado dificuldades nas análises interpretativas, múltiplas em cada caso.

Além de sua forte inspiração em Kafta, o que rendeu ao escritor ser um dos grandes nomes na literatura fantástica, a novidade do conto borginiano está na moderna conjunção de arte e pensamento.

Jorge Luis Borges, poeta douto, reflexivo e crítico, abomina o romance psicológico, é uma espécie de anti-Proust, um escritor absolutamente não confessional. Ele soube “ritmar o próprio pensamento dando expressão artística a uma constante reflexão sobre a literatura e a certas generalizações abstratas sobre o universo”[1].

A figura do Narrador, onipresente em suas narrativas, transforma a matriz do conto literário que ele, articuladamente, trabalha. Em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, o Narrador, ao longo do texto, joga com elementos ambíguos da ficção e da realidade, a ponto de direcionar o leitor a Sua perspectiva, muitas vezes falaciosa e abstrata, sustentada por argumentos conjeturais.

Como no excelente “A morte e a bússola”, Borges demonstrava também gostar de narrativas de aventura e policiais, porém com um particularidade: modifica substancialmente esses gêneros “pelo teor de perquirição filosófica e explicitação irônica do jogo intelectual que neles introduz”[2].

Não há como dispensar a contribuição do conto filosófico de Voltaire na formação de Borges. Neste tipo de conto predomina uma dualidade: de um lado, o plano da história (em que prestamos atenção no destino dos personagens), do outro, o plano do discurso (em que nos fixamos nas idéias do narrador em sua destreza em exprimi-las). Na verdade, essa dicotomia é latente em toda narrativa, mas aflora no conto filosófico pelo papel sobressalente que se atribui ao narrador. Este tenta impor sua visão de mundo intelectualizada e fantasiosa, às vezes beirando a sátira.

Gostei muito de ler Ficções – apesar da edição da Editora Globo não merecer tantos elogios, com graves erros de revisão e tipográficos que, às vezes, podem ser fatais à obra em questão –, sobretudo pelo caráter extremamente universal de cada conto. É como se cada estória existisse além da História, desarraigada do tempo e espaço, autônoma em relação à realidade; sua metafísica transcende. Um livro para todas as gerações.


[1] Trecho de Davi Arrigucci Jr no prefácio a terceira edição da Editora Globo, São Paulo, 2001.

[2] Idem

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Ressurreição

Tolstói

Poucos romances que já li conseguem abarcar, de forma tão intensa, os impasses do ser humano frente às contradições da sociedade capitalista, tal como nos narra Tolstói, em seu bellíssimo “Ressurreição”.

Sua narrativa simples e rica de detalhes nos revela a desigualdade ríspida da Rússia do século XIX, mergulhada em idéias revolucionárias que muitas vezes entravam em choque com a sociedade tradicionalista da época. Por sua apurada descrição, ler este romance é como poder sentir na pele a frialdade dos campos de refugiados siberianos.

Nessa contradição de valores, o príncipe Nekhludov reconhece Maslova num tribunal prestes a ser condenada aos trabalhos forçados, razão pela qual ele a persegue para tentar fazer “justiça” – não que esta palavra significasse alguma coisa para ele, acostumado a grandes festas em palácios suntuosos –, mas por tudo aquilo que a salvação de Maslova representava, ou representou num dado momento de sua vida.

Na busca por remissão, o príncipe russo se despoja das riquezas e honrarias do mundo e ruma a favor de Maslova. Ao se deparar com todos os empecilhos que terá de enfrentar, Nekhludov se reveste de uma coragem irrefragável, a qual o permitirá conhecer uma realidade que sempre soube existir, porém jamais a encarou.

Em sua peregrinação, o príncipe Dimitri Ivanovitch Nekhludov conhece todos os problemas do sistema carcerário da época, que ele pôde perceber que abrigava a parte marginal da sociedade, pessoas desprezíveis que não usufruíam dos mesmos privilégios da elite russa a qual ele pertencia. Isto lhe provoca um sentimento de culpa jamais sentido, agora não só por Maslova, mas por todos aqueles camponeses, criminosos vulgares e presos políticos. Sentia-se co-responsável pela injustiça infligida àquela classe desfavorecida.

Na verdade, toda essa renúncia delineada em Ressurreição, escrita já no fim da vida de Tolstói, depois do grande sucesso de obras anteriores como Guerra e Paz e Anna Karenina, reflete parte da história de seu próprio autor. De fato, Tolstoi tentou renunciar as suas propriedades em favor dos pobres, mas a sua família impediu-o.

“Ressurreição”, escrito em 1899 e 1990, é uma obra caracteristicamente tostoiana, pois aí se admiram pinceladas sensíveis da sociedade russa e fidelíssimos retratos, sobretudo os femininos, que o autor costumava esmerar-se. Confronta, como uma boa obra russa, por excelência.




Frases de Tolstói:

"Os ricos farão de tudo pelos pobres, menos descer de suas costas."

"Quem nunca esteve na prisão não sabe como é o Estado".

"A arte é um dos meios que unem os homens."

"Não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade."

"Em arte tudo está naquele nada."

"Em minha busca de respostas para a pergunta da vida, senti-me exatamente como um homem perdido em uma floresta."

"Quase todos os esforços humanos se dirigem não à diminuição da carga do trabalhador, mas a tornar mais agradável o ócio dos que já vivem em lazer."

"Cada um pensa em mudar a humanidade, mas ninguém pensa em mudar-se a si mesmo."

"É mais fácil escrever dez volumes de princípios filosóficos que por em prática um só deles."

"Antes de dar ao povo sacerdotes, soldados e maestros, seria oportuno saber se ele não está morrendo de fome."

sábado, 19 de janeiro de 2008

Editando o Editor

Volume I - J. Guinsburg*

“Edição é paixão pelo livro e paixão pela coisa intelectual”, eis o primeiro capítulo do livro “J. Guinsburg” da coleção “Editando o Editor”, que reúne relatos de importantes profissionais do campo editorial, como Ênio Silvera (Civilização Brasileira) e Jorge Zahar (Zahar), além do próprio J.Guinsburg (Editora Perspectiva). Esta relevante coleção foi publicada pela Editora COM-ARTE, e dirigida pela professora do curso de Editoração da USP, Jerusa Pires Ferreira.

Discutir editoração é uma questão aberta, sujeita a um diversificado conjunto de possibilidades. Escolhi uma definição que, a meu ver, sintetiza esse campo vasto de experiências: segundo Sônia Maria de Amorim e Vera Helena Farinas Tremel, autoras do livro em questão, “Editar pressupõe ação contínua, processo permanente. Desde a potencialidade de um texto, produto da vontade humana de comunicar, até sua corporificação numa base físico-documental, muitas ações reúnem, sobrepõem, complementam. Emerge, dái o editor”.

Ler o relato de J. Guinsburg em sua “aventura” de criar a Editora Perpectiva enche de utopias jovens aspirantes a editores. Segundo ele, assim como todo projeto humano é acompanhado de uma utopia a qual o instiga e o impulsiona a desenvolver, numa editora – enquanto iniciativa no campo cultural – essa ilusão é muito mais forte.

Para J.Guinsburg, a questão editorial não é apenas de ordem empresarial, e não pode ser entendido unicamente por vias mercadológicas. Há uma ligação direta entre o mundo intelectual, o mundo literário e o processo de editoração, daí é que sobrevém a tal paixão que deve inspirar o editor na hora de escolher quais textos devem ou deveriam ser publicados.

O que não é uma escolha tão simples assim, uma vez que há duas maneiras de se trabalhar que definem os perfis de editores. A primeira delas é aquela a favor do mercado, pelo menos ao que se supõe ser o mercado. E existe aquilo que se supõe ser contra o mercado. O editor pode trabalhar “na contra mão” por várias razões: por que acha que existe um público, ainda que seja pequeno, onde possa penetrar e atender necessidades de alguma ordem, ou porque tem um projeto contracultural, contra-ideológico, etc.

Quem trabalha “a favor” não corre rico algum e, segundo ele, não é propriamente um editor, é antes um publisher[1], que faz uma análise do mercado, realiza levantamentos econômicos e mercadológicos e, em função da demanda, lança. É pensarmos em função do lucro previsto; se um livro, ainda que seja bom, não tem mercado, não interessa sua publicação.

Quem joga “contra” corre riscos sempre. É realmente uma aposta publicar um livro, com todos os encargos pecuniários que este implica, quando este livro for para as livrarias e não ser vendido em uma quantidade razoável. Fazer esse tipo de proposta num país como o Brasil, com baixo índice de leitura, torna-se uma verdadeira aventura, e das mais perigosas.

A linha editorial da Perpectiva, desde sua fundação em 1965 e sob a direção de J.Guinsburg, tem trilhado este caminho. Nesta Editora, a pergunta básica para se publicar um livro deve ser esta: este livro merece ser lido, merece circulação? Ele reúne qualidades mínimas pelas quais vale à pena apostar?

Vejo em Guinsburg a utopia própria daquela geração, em que defender causas era o propósito de suas próprias vidas. Difícil apostar, nos dias atuais, em qualquer projeto que promova a diversidade de manifestações culturais em suas várias formas. Nesse caso, os meios de comunicação têm um papel fundamental: tornar conhecido e acessível a todos um produto cultural, que muitas vezes é restrito a pequenos círculos de intelectuais.

O livro precisa dessa ilusão, precisa desse impulso muitas vezes irracional para que um maior número de pessoas possam se deliciar na sua leitura, assim como nós, seus parcos amantes. Acho que o papel de uma editora deve beirar essa perspectiva, enquanto difusor cultural, devendo acreditar que “editar é mais uma arte que uma técnica”, nas palavras de Guinsburg.



* O livro já está esgotado na editora (o que eu tenho é uma humilde xerox), e também não há foto no google. Ainda há os outros volumes em www.edusp.com.br

[1] Termo altamente difundido nos EUA, referente ao profissional que publica não apenas livros, mas também revistas e jornais. (Graças às aulas do Mário!)


quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

A Abolição do Homem


C.S. Lewis


Segundo Walter Hooper, A abolição do Homem deveria ser o segundo livro lido por todo mundo depois da Bíblia. Exageros à parte, nunca li nada mais claro e convincente, com uma argumentação sólida e consistente em defesa de uma Moralidade Absoluta, a qual sofre, nos dias atuais, uma intensa relativização.

Partindo de um pequeno trecho de um livro destinado a “meninos e meninas das últimas séries”, C.S Lewis destaca uma simples fala de um personagem a fim desvelar qual a intenção do autor e como será a recepção do seu público juvenil. Sua aguda percepção o permite deduzir que aquela afirmação poderia conter um incentivo a uma idéia, a um pressuposto “que, dez anos mais tarde, quando sua origem estiver esquecida e sua presença for inconsciente, vai condicioná-lo a tomar um determinado partido” em uma situação particular.

Nada mais óbvio para nós, geração do pós-pós, condicionados a receber – muitas vezes passivamente, embora defendamos fervorosamente a bandeira da interatividade, conectividade e outros “dades” da vida – influências e estímulos próprios da vida moderna.

A preocupação do autor, e que poderia ser a nossa, é detectar que tipo de conseqüência um simples trecho de um livro infantil – ou, em nosso caso, um comercial de TV, um artigo de jornal, um brinquedo, um game, um outdoor, etc – pode ter sobre nossa geração e sobre gerações futuras.

Tais artefatos tendenciosos porém não foram feitos ou articulados por ninguém a não ser o próprio homem. E isto vem do avanço do ensino das ciências aplicadas, a qual vulgarmente conhecida e bradada como “A Conquistada do Homem sobre a Natureza”, no sentido em que o gênero humano tem poder e força capazes de subjugar as forças tidas como naturais a seu bel prazer.

Desde a Idade da Razão, fala-se dessa concepção criativa da mente humana em relação à natureza. Dentro de uma visão progressista, tal processo tem se sido cada vez mais célere nos últimos anos com todo o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia em seus diversos campos.

“A natureza está a serviço do homem”, conclamam alguns de seus defensores ao anunciar a descoberta do DNA, os modernos métodos anticoncepcionais, a clonagem de células, a nanotecnologia e os recentes estudos sobre física quântica. Assim, o Homem aprendeu a se sentir dono da Natureza, porém ultimamente se esforça para aprender a ser vítima dela, vide, por exemplo, todas as conseqüências irreversíveis do aquecimento global.

Assim como no livro de C.S. Lewis, não se trata aqui de rejeitarmos todo e qualquer avanço científico, negando qualquer aspecto positivo que deles advierem, ou ainda nos tornando tecnofóbicos, caindo num maniqueísmo sem quaisquer precedentes. Mas sim, de nos debruçarmos sobre a seguinte questão: Em que sentido o Homem possui um poder crescente sobre a Natureza?

Será que, uma vez tendo esse poder, ele o usa em favor de todos da raça humana ou só para alguns? Não seria cada novo poder conquistado pelo homem uma forma de poder sobre o homem? Dessa forma, o que nos parece ser a conquista final do homem pode significar a própria abolição do Homem?

Não pretendo estragar toda a brilhante argumentação do autor com minhas insípidas e breves palavras, mas apenas deixar um humilde convite para a leitura de mais um excelente livro de C.S. Lewis, A Abolição do Homem.

Editora Martins Fontes

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Bibliomania

Gustave Flaubert

“Numa rua estreita e sem sol de Barcelona, morava, havia pouco tempo, um desses homens de semblante pálido, de olhar cavo e embaciado, um desses seres satânicos e bizarros como os que Hoffmann desenterrava em seus sonhos.
Era Giácomo, o livreiro.”

Com apenas 15 anos de idade, Gustave Flaubert escreve seu primeiro conto: “Bibliomanie”, confeccionado a partir de um artigo da Gazette des Tribunaux de 23 de outubro de 1836, que publicou a estranha história de um livreiro assassino que acabou condenado à morte.

Flaubert conta-nos a história de um livreiro com uma cega obsessão por aquilo que mais venerava na vida, seus livros. Não que fosse um homem que amava as ciências e o conhecimento, antes as amava em sua forma de expressão; apanhava um livro, folheava suas páginas, manuseava sua capa e examinava sua lombada, agradava-lhe seu cheiro, seu título, sua forma.

Por conta de sua paixão, Giácomo se via em uma eterna hesitação, pois antes de tudo precisava vender seus preciosos objetos para sobreviver. E é nessa contradição, que o livreiro de Barcelona receberá a visita de um ilustre estudante, que está obstinado a levar um raro livro a qualquer preço.


Editora Casa da Palavra, 2001