terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Ressurreição

Tolstói

Poucos romances que já li conseguem abarcar, de forma tão intensa, os impasses do ser humano frente às contradições da sociedade capitalista, tal como nos narra Tolstói, em seu bellíssimo “Ressurreição”.

Sua narrativa simples e rica de detalhes nos revela a desigualdade ríspida da Rússia do século XIX, mergulhada em idéias revolucionárias que muitas vezes entravam em choque com a sociedade tradicionalista da época. Por sua apurada descrição, ler este romance é como poder sentir na pele a frialdade dos campos de refugiados siberianos.

Nessa contradição de valores, o príncipe Nekhludov reconhece Maslova num tribunal prestes a ser condenada aos trabalhos forçados, razão pela qual ele a persegue para tentar fazer “justiça” – não que esta palavra significasse alguma coisa para ele, acostumado a grandes festas em palácios suntuosos –, mas por tudo aquilo que a salvação de Maslova representava, ou representou num dado momento de sua vida.

Na busca por remissão, o príncipe russo se despoja das riquezas e honrarias do mundo e ruma a favor de Maslova. Ao se deparar com todos os empecilhos que terá de enfrentar, Nekhludov se reveste de uma coragem irrefragável, a qual o permitirá conhecer uma realidade que sempre soube existir, porém jamais a encarou.

Em sua peregrinação, o príncipe Dimitri Ivanovitch Nekhludov conhece todos os problemas do sistema carcerário da época, que ele pôde perceber que abrigava a parte marginal da sociedade, pessoas desprezíveis que não usufruíam dos mesmos privilégios da elite russa a qual ele pertencia. Isto lhe provoca um sentimento de culpa jamais sentido, agora não só por Maslova, mas por todos aqueles camponeses, criminosos vulgares e presos políticos. Sentia-se co-responsável pela injustiça infligida àquela classe desfavorecida.

Na verdade, toda essa renúncia delineada em Ressurreição, escrita já no fim da vida de Tolstói, depois do grande sucesso de obras anteriores como Guerra e Paz e Anna Karenina, reflete parte da história de seu próprio autor. De fato, Tolstoi tentou renunciar as suas propriedades em favor dos pobres, mas a sua família impediu-o.

“Ressurreição”, escrito em 1899 e 1990, é uma obra caracteristicamente tostoiana, pois aí se admiram pinceladas sensíveis da sociedade russa e fidelíssimos retratos, sobretudo os femininos, que o autor costumava esmerar-se. Confronta, como uma boa obra russa, por excelência.




Frases de Tolstói:

"Os ricos farão de tudo pelos pobres, menos descer de suas costas."

"Quem nunca esteve na prisão não sabe como é o Estado".

"A arte é um dos meios que unem os homens."

"Não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade."

"Em arte tudo está naquele nada."

"Em minha busca de respostas para a pergunta da vida, senti-me exatamente como um homem perdido em uma floresta."

"Quase todos os esforços humanos se dirigem não à diminuição da carga do trabalhador, mas a tornar mais agradável o ócio dos que já vivem em lazer."

"Cada um pensa em mudar a humanidade, mas ninguém pensa em mudar-se a si mesmo."

"É mais fácil escrever dez volumes de princípios filosóficos que por em prática um só deles."

"Antes de dar ao povo sacerdotes, soldados e maestros, seria oportuno saber se ele não está morrendo de fome."

sábado, 19 de janeiro de 2008

Editando o Editor

Volume I - J. Guinsburg*

“Edição é paixão pelo livro e paixão pela coisa intelectual”, eis o primeiro capítulo do livro “J. Guinsburg” da coleção “Editando o Editor”, que reúne relatos de importantes profissionais do campo editorial, como Ênio Silvera (Civilização Brasileira) e Jorge Zahar (Zahar), além do próprio J.Guinsburg (Editora Perspectiva). Esta relevante coleção foi publicada pela Editora COM-ARTE, e dirigida pela professora do curso de Editoração da USP, Jerusa Pires Ferreira.

Discutir editoração é uma questão aberta, sujeita a um diversificado conjunto de possibilidades. Escolhi uma definição que, a meu ver, sintetiza esse campo vasto de experiências: segundo Sônia Maria de Amorim e Vera Helena Farinas Tremel, autoras do livro em questão, “Editar pressupõe ação contínua, processo permanente. Desde a potencialidade de um texto, produto da vontade humana de comunicar, até sua corporificação numa base físico-documental, muitas ações reúnem, sobrepõem, complementam. Emerge, dái o editor”.

Ler o relato de J. Guinsburg em sua “aventura” de criar a Editora Perpectiva enche de utopias jovens aspirantes a editores. Segundo ele, assim como todo projeto humano é acompanhado de uma utopia a qual o instiga e o impulsiona a desenvolver, numa editora – enquanto iniciativa no campo cultural – essa ilusão é muito mais forte.

Para J.Guinsburg, a questão editorial não é apenas de ordem empresarial, e não pode ser entendido unicamente por vias mercadológicas. Há uma ligação direta entre o mundo intelectual, o mundo literário e o processo de editoração, daí é que sobrevém a tal paixão que deve inspirar o editor na hora de escolher quais textos devem ou deveriam ser publicados.

O que não é uma escolha tão simples assim, uma vez que há duas maneiras de se trabalhar que definem os perfis de editores. A primeira delas é aquela a favor do mercado, pelo menos ao que se supõe ser o mercado. E existe aquilo que se supõe ser contra o mercado. O editor pode trabalhar “na contra mão” por várias razões: por que acha que existe um público, ainda que seja pequeno, onde possa penetrar e atender necessidades de alguma ordem, ou porque tem um projeto contracultural, contra-ideológico, etc.

Quem trabalha “a favor” não corre rico algum e, segundo ele, não é propriamente um editor, é antes um publisher[1], que faz uma análise do mercado, realiza levantamentos econômicos e mercadológicos e, em função da demanda, lança. É pensarmos em função do lucro previsto; se um livro, ainda que seja bom, não tem mercado, não interessa sua publicação.

Quem joga “contra” corre riscos sempre. É realmente uma aposta publicar um livro, com todos os encargos pecuniários que este implica, quando este livro for para as livrarias e não ser vendido em uma quantidade razoável. Fazer esse tipo de proposta num país como o Brasil, com baixo índice de leitura, torna-se uma verdadeira aventura, e das mais perigosas.

A linha editorial da Perpectiva, desde sua fundação em 1965 e sob a direção de J.Guinsburg, tem trilhado este caminho. Nesta Editora, a pergunta básica para se publicar um livro deve ser esta: este livro merece ser lido, merece circulação? Ele reúne qualidades mínimas pelas quais vale à pena apostar?

Vejo em Guinsburg a utopia própria daquela geração, em que defender causas era o propósito de suas próprias vidas. Difícil apostar, nos dias atuais, em qualquer projeto que promova a diversidade de manifestações culturais em suas várias formas. Nesse caso, os meios de comunicação têm um papel fundamental: tornar conhecido e acessível a todos um produto cultural, que muitas vezes é restrito a pequenos círculos de intelectuais.

O livro precisa dessa ilusão, precisa desse impulso muitas vezes irracional para que um maior número de pessoas possam se deliciar na sua leitura, assim como nós, seus parcos amantes. Acho que o papel de uma editora deve beirar essa perspectiva, enquanto difusor cultural, devendo acreditar que “editar é mais uma arte que uma técnica”, nas palavras de Guinsburg.



* O livro já está esgotado na editora (o que eu tenho é uma humilde xerox), e também não há foto no google. Ainda há os outros volumes em www.edusp.com.br

[1] Termo altamente difundido nos EUA, referente ao profissional que publica não apenas livros, mas também revistas e jornais. (Graças às aulas do Mário!)


quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

A Abolição do Homem


C.S. Lewis


Segundo Walter Hooper, A abolição do Homem deveria ser o segundo livro lido por todo mundo depois da Bíblia. Exageros à parte, nunca li nada mais claro e convincente, com uma argumentação sólida e consistente em defesa de uma Moralidade Absoluta, a qual sofre, nos dias atuais, uma intensa relativização.

Partindo de um pequeno trecho de um livro destinado a “meninos e meninas das últimas séries”, C.S Lewis destaca uma simples fala de um personagem a fim desvelar qual a intenção do autor e como será a recepção do seu público juvenil. Sua aguda percepção o permite deduzir que aquela afirmação poderia conter um incentivo a uma idéia, a um pressuposto “que, dez anos mais tarde, quando sua origem estiver esquecida e sua presença for inconsciente, vai condicioná-lo a tomar um determinado partido” em uma situação particular.

Nada mais óbvio para nós, geração do pós-pós, condicionados a receber – muitas vezes passivamente, embora defendamos fervorosamente a bandeira da interatividade, conectividade e outros “dades” da vida – influências e estímulos próprios da vida moderna.

A preocupação do autor, e que poderia ser a nossa, é detectar que tipo de conseqüência um simples trecho de um livro infantil – ou, em nosso caso, um comercial de TV, um artigo de jornal, um brinquedo, um game, um outdoor, etc – pode ter sobre nossa geração e sobre gerações futuras.

Tais artefatos tendenciosos porém não foram feitos ou articulados por ninguém a não ser o próprio homem. E isto vem do avanço do ensino das ciências aplicadas, a qual vulgarmente conhecida e bradada como “A Conquistada do Homem sobre a Natureza”, no sentido em que o gênero humano tem poder e força capazes de subjugar as forças tidas como naturais a seu bel prazer.

Desde a Idade da Razão, fala-se dessa concepção criativa da mente humana em relação à natureza. Dentro de uma visão progressista, tal processo tem se sido cada vez mais célere nos últimos anos com todo o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia em seus diversos campos.

“A natureza está a serviço do homem”, conclamam alguns de seus defensores ao anunciar a descoberta do DNA, os modernos métodos anticoncepcionais, a clonagem de células, a nanotecnologia e os recentes estudos sobre física quântica. Assim, o Homem aprendeu a se sentir dono da Natureza, porém ultimamente se esforça para aprender a ser vítima dela, vide, por exemplo, todas as conseqüências irreversíveis do aquecimento global.

Assim como no livro de C.S. Lewis, não se trata aqui de rejeitarmos todo e qualquer avanço científico, negando qualquer aspecto positivo que deles advierem, ou ainda nos tornando tecnofóbicos, caindo num maniqueísmo sem quaisquer precedentes. Mas sim, de nos debruçarmos sobre a seguinte questão: Em que sentido o Homem possui um poder crescente sobre a Natureza?

Será que, uma vez tendo esse poder, ele o usa em favor de todos da raça humana ou só para alguns? Não seria cada novo poder conquistado pelo homem uma forma de poder sobre o homem? Dessa forma, o que nos parece ser a conquista final do homem pode significar a própria abolição do Homem?

Não pretendo estragar toda a brilhante argumentação do autor com minhas insípidas e breves palavras, mas apenas deixar um humilde convite para a leitura de mais um excelente livro de C.S. Lewis, A Abolição do Homem.

Editora Martins Fontes

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Bibliomania

Gustave Flaubert

“Numa rua estreita e sem sol de Barcelona, morava, havia pouco tempo, um desses homens de semblante pálido, de olhar cavo e embaciado, um desses seres satânicos e bizarros como os que Hoffmann desenterrava em seus sonhos.
Era Giácomo, o livreiro.”

Com apenas 15 anos de idade, Gustave Flaubert escreve seu primeiro conto: “Bibliomanie”, confeccionado a partir de um artigo da Gazette des Tribunaux de 23 de outubro de 1836, que publicou a estranha história de um livreiro assassino que acabou condenado à morte.

Flaubert conta-nos a história de um livreiro com uma cega obsessão por aquilo que mais venerava na vida, seus livros. Não que fosse um homem que amava as ciências e o conhecimento, antes as amava em sua forma de expressão; apanhava um livro, folheava suas páginas, manuseava sua capa e examinava sua lombada, agradava-lhe seu cheiro, seu título, sua forma.

Por conta de sua paixão, Giácomo se via em uma eterna hesitação, pois antes de tudo precisava vender seus preciosos objetos para sobreviver. E é nessa contradição, que o livreiro de Barcelona receberá a visita de um ilustre estudante, que está obstinado a levar um raro livro a qualquer preço.


Editora Casa da Palavra, 2001