sábado, 23 de fevereiro de 2008

Fragmentos de um discurso amoroso

Roland Barthes


As palavras nunca são loucas (no máximo perversas), é a sintaxe que é louca (...)

Roland Barthes

O que é o amor? Indagação nada fácil de responder, poetas e românticos de todos os tempos se esforçaram e se esforçam para alcançar ao menos um resquício do que venha a ser Eros. Roland Barthes aposta então em outra pergunta: Como o amor se apresenta quando ele é comunicado? Isto é, quando está infundido num complexo emaranhado de estruturas e fórmulas que é a linguagem?

Roland Barthes, em Fragmentos de um discurso amoroso, pretende investigar o amor – ou a condição amorosa – no ponto de vista do discurso. A carta de amor, as declarações, são formas de tentar pôr em palavras um sentimento sublime e quase imperscrutável, por isso que o discurso amoroso é, muitas vezes, contraditório, exagerado, louco.

Para incorrer nesse desafio, Barthes, como ilustre intelectual da França de 1968, escolhe um método “dramático” na sua escrita, renunciando a exemplos e substituindo a simples descrição do discurso amoroso por sua simulação, desenvolvendo-se em primeira pessoa, o “eu” amoroso, posto que o livro todo é uma enunciação, e não uma fria análise. É alguém (o amante) que fala de si mesmo e do outro (objeto amado), que não fala.

Para compor o sujeito apaixonado, o semiólogo também se vale de inúmeras e preciosas referências, que acompanham essa enunciação ao longo do livro. As citações a Werther de Goethe norteiam todo o discurso, ao lado de textos clássicos como O Banquete de Platão, além de consagrados escritores – Proust, Flaubert, Balzac, Baudelaire, Stendhal – e filósofos – Freud, Sartre, Lacan e Nietzsche. Há também o que Barthes recolheu em conversas com amigos e experiências de sua própria vida.

Abordando de maneira criativa um tema considerado démodé para a intelectualidade da época, Fragmentos de um discurso amoroso é livro obrigatório para aqueles que se interessam por literatura, lingüística, filosofia e, é claro, amor.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ficções

Jorge Luis Borges

Ler um conto fantástico de Borges é como ler Dostoievski pela primeira vez: uma experiência única. O alto padrão de sua escrita combinado com o teor intelectual e filosófico de seus contos conferem-lhe um estilo insólito primoroso, digno de grandes

escritores.

No entanto, terminar de ler Ficções não é lá muito agradável; ao final do livro, dá aquela sensação de quero mais.

Ficciones (1934-1944) é obra-prima de Borges, pois deu fama internacional a seu autor e marcou para sempre gerações de leitores no mundo todo. Esse grande livro reúne contos fantásticos cuja crítica especializada tem encontrado dificuldades nas análises interpretativas, múltiplas em cada caso.

Além de sua forte inspiração em Kafta, o que rendeu ao escritor ser um dos grandes nomes na literatura fantástica, a novidade do conto borginiano está na moderna conjunção de arte e pensamento.

Jorge Luis Borges, poeta douto, reflexivo e crítico, abomina o romance psicológico, é uma espécie de anti-Proust, um escritor absolutamente não confessional. Ele soube “ritmar o próprio pensamento dando expressão artística a uma constante reflexão sobre a literatura e a certas generalizações abstratas sobre o universo”[1].

A figura do Narrador, onipresente em suas narrativas, transforma a matriz do conto literário que ele, articuladamente, trabalha. Em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, o Narrador, ao longo do texto, joga com elementos ambíguos da ficção e da realidade, a ponto de direcionar o leitor a Sua perspectiva, muitas vezes falaciosa e abstrata, sustentada por argumentos conjeturais.

Como no excelente “A morte e a bússola”, Borges demonstrava também gostar de narrativas de aventura e policiais, porém com um particularidade: modifica substancialmente esses gêneros “pelo teor de perquirição filosófica e explicitação irônica do jogo intelectual que neles introduz”[2].

Não há como dispensar a contribuição do conto filosófico de Voltaire na formação de Borges. Neste tipo de conto predomina uma dualidade: de um lado, o plano da história (em que prestamos atenção no destino dos personagens), do outro, o plano do discurso (em que nos fixamos nas idéias do narrador em sua destreza em exprimi-las). Na verdade, essa dicotomia é latente em toda narrativa, mas aflora no conto filosófico pelo papel sobressalente que se atribui ao narrador. Este tenta impor sua visão de mundo intelectualizada e fantasiosa, às vezes beirando a sátira.

Gostei muito de ler Ficções – apesar da edição da Editora Globo não merecer tantos elogios, com graves erros de revisão e tipográficos que, às vezes, podem ser fatais à obra em questão –, sobretudo pelo caráter extremamente universal de cada conto. É como se cada estória existisse além da História, desarraigada do tempo e espaço, autônoma em relação à realidade; sua metafísica transcende. Um livro para todas as gerações.


[1] Trecho de Davi Arrigucci Jr no prefácio a terceira edição da Editora Globo, São Paulo, 2001.

[2] Idem